*Por Eduardo Junqueira
Nelson Rodrigues disse certa vez que há partidas de futebol que são fadadas ao zero a zero, ao um a um, aos empates inexoráveis. Joguem pela eternidade e o resultado não trará vencedores. Liverpool e Chelsea, numa final da FA Cup, o torneio que mereceu um alentado estudo de Hobsbawn no livro “A invenção das tradições”, estiveram condenados a um desses empates fatais – caso o goleiro do time de Londres não isolasse a bola na arquibancada, estrariam os dois times até agora batendo pênaltis em vão.
O empate entre Fluminense e Corinthians, na semifinal do Brasileirão de 1976, apesar de épico, não foi marcado por essa moira da irresolução dos empates eternos, mas pela tragédia. Um a um, seguia a partida empatada ao longo do primeiro tempo. No intervalo, um dilúvio bíblico despencou-se sobre a cidade. O aguaceiro fora certamente mandado por São Jorge, o padroeiro dos corintianos que, nesse dia, ludibriou Pedro, o santo das chuvas. O gramado do Mário Filho (“chamem o Maracanã de Mario Filho”, clamava a viúva do grande jornalista) transformou-se em verdadeiro alagadiço, digno de uma paisagem pantaneira e incompatível com a prática do futebol (atualmente, uma simples garoa pode interromper uma final de Copa do Mundo).
Pior para o Flu. A equipe tricolor dependia muito mais das boas condições do campo do que a do Timão, cujos jogadores, sem ser tecnicamente apurados, eram acostumados às dificuldades duma várzea encharcada. O fato é que mesmo antes da chuvarada, o escrete paulista esteve bem postado em campo; marcação eficiente, o time de Geraldão, Tobias e Zé Maria conseguiu anular o talentoso meio de campo do Fluminense, talvez entusiasmado pela maciça presença de sua torcida, que invadiu o Rio; um certo ar de “já ganhou” pode haver despertado o brio dos jogadores do Corinthians, motivando-os a encarar de igual para igual o galáctico time das Laranjeiras.
Mas poderíamos erguer cadafalsos para enforcar o time comandado por Rivelino e por Carlos Alberto Torres? O time que jogava o melhor futebol daquele lustro, quiçá de todos os tempos?
Não, evidentemente. Sabíamos que numa cancha seca o Fluminense teria imposto fragorosa derrota aos corintianos. Caímos não diante do adversário, mas vencidos pelas forças titânicas da natureza. Não havia culpados. E ter esse sentimento resulta de que os adeptos do Tricolor conseguem se satisfazer apenas com o espetáculo da batalha, com a luta em si, de maneira que, se o título não vem ou não veio, resta-nos o orgulho e a gratidão de ter testemunhado uma experiência deflagradora. Bastaram para o ego, a Taça Guanabara, a Teresa Herrera, um bicampeonato carioca e a certificação de que aquela formação de 1975 e 1976 marcaria a história do futebol para sempre.
Todavia, pergunto: “A Máquina”, que outra equipe merecerá tão significativa alcunha? O Real Madrid com seus 15 títulos europeus, vitoriosíssimo, valiosíssimo, burocrático? A Hungria de Puskas, que não logrou ser campeã na Suíça? O estratosférico Santos de Pelé?
Nos dias de hoje, marcados pelo utilitarismo, pela eficiência e pelos resultados, acreditamos que a régua da qualidade se mede em função das conquistas. Será que um time sem títulos não tem valor? Então, indagamos: como o Santa Cruz, o Estrela da Amadora, o Sporting Gijon, o Cagliari, o APOEL e o Norwich, entre outros, conseguem angariar tantos e tão fanáticos torcedores?
Ficamos, como tricolores, sem títulos significativos até o triunfo da Libertadores da América – excetuando-se o campeonato carioca de 1995, o do gol de barriga, nem o título mundial de 1952 ou o primeiro troféu no brasileiro se lhe comparam em grandeza. Sim, a taça era enlouquecidamente cobiçada e, dadas as condições que se apresentaram naquela final memorável, jamais encontrará paralelo ou será igualada por clube algum.
O orgulho e a gratidão, volto a repetir. Represado por quinze anos, o grito de “é campeão” pôde enfim ecoar das Laranjeiras para o mundo. Os torcedores não a veem a derrota de 2008, diante de um Maracanã atônito, como fracasso, mas como capítulo de uma história gloriosa. Para que o Flu erguesse a taça de campeão da América em 2023, esta e outras derrotas contribuíram decisivamente, assim como o desastre de 1976 pavimentou o caminho para o título de 1984. Só os idiotas não sabem que devemos trazer os reveses ao lado, como na vida. São constitutivos de nossa identidade, costuram nossa couraça, preparam as costas para o peso das cruzes e nos dão a certeza de que os maus resultados não mancham nem a história, tampouco as conquistas de cada um.
Para o povo, que é sábio, as derrotas se insculpem sofridamente na memória. No que toca à Seleção, falamos muito mais na queda para o Uruguai de Ghiggia, em 1950, do que na conquista do time de 2002. Duvido que um jovem de vinte anos saiba, hoje, que o Brasil se sagrou campeão mundial no Chile, em 1962. Mas, certamente, saberá escalar o time que foi massacrado pela Alemanha em 2014, e até dar detalhes surpreendentes dessa derrota fundamental e de triste memória.
Haverá algo mais entediante do que a companhia de um eterno vitorioso? De um dândi que só tem sucessos na vida para contar e que, soberbo, não conhece o malogro, ou nunca experimentou sequer uma queda? Fossem os clubes indivíduos, jamais convidaria um Real Madrid, um Bayern de Munique, um Manchester United para tomar uma cerveja num boteco e se o Barcelona atravessasse a rua para me desafiar a uma sinuca, logo inventaria uma desculpa qualquer para evitar tão desagradável parceiro.
Vejo ainda com o maior desprezo, esses últimos torcedores, entre nós, a dizer cheios de arrogância: “nunca fui rebaixado”. Ora, deveriam se envergonhar disso, jamais haver disputado outra divisão inferior do campeonato nacional. Maldita soberba, são como o glutão que não se satisfaz com uma refeição frugal e, entufado, quase deixa de ver sentido na simplicidade da vida. “São as dificuldades que nos fazem crescer”, diz o bordão, pronto para ser esculpido em pedra, posto como advertência na porta de todos os clubes, a exemplo do que fizera, na Grécia antiga, certo Diógenes de Enoanda, o qual mandou gravar os benefícios do tetrafármacon, num monólito à entrada de sua cidade.
No dia dois de agosto de 1998, vieram para a disputa do primeiro jogo da Série B, o Fluminense e o ABC. Marcado para as 11 horas de uma manhã de domingo tristemente ensolarada, lotaram o Mário Filho cerca de 50 mil torcedores do Fluminense, dentre os quais este que vos fala. Não vinha ao estádio fazia tempo e estranhei das arquibancadas a proibição do pó-de-arroz, o simpático símbolo do Tricolor. Era a estreia do time, rebaixado no ano anterior. O resultado não poderia ter sido mais desastroso, com a vitória do escrete potiguar por 3 a 2. O que fez a torcida do Fluminense? Desesperou-se ou foi em busca de culpados para levá-los à guilhotina? Não! Saiu louca, tomada de estranha euforia, a cantar “A benção João de Deus”. Ante a expectativa de que o fundo do poço se avizinhava, havia ali a certeza de que o necessário fracasso não mancharia nossa trajetória e que a Glória Eterna estaria por vir, não importava quanto precisássemos esperar.
Quem sobreviveu a tantos percalços merece continuar comemorando o triunfo de 2023 até o fim dos tempos – volto a dizer, façanha inigualável por clube algum, dadas as condições daquela conquista. O troféu ainda está nas Laranjeiras. Para tirá-lo de lá, que venha outro campeão – ou quem sabe, em 2024, nós mesmos tenhamos a ventura de o reconquistar, no final do ano, em Buenos Aires…
Dizem que a torcida do vitoriosíssimo Real Madrid é das mais enfadonhas da face da Terra. Não é apenas blasé, mas insuportável em sua opulência, a sofrer de uma espécie de indigestão de títulos. Todo o sujeito satisfeito é perigoso e chato. Quinze Champions, um cofre cheio de euros até a boca, centenas de conquistas do mais aborrecido torneio nacional. Nem se somados, esses 15 títulos do Madrid valeriam a nossa única Libertadores e eu, como autêntico tricolor, não trocaria nenhuma de nossas vitórias sobre nosso arquirrival freguês, no Campeonato Carioca (a do gol de barriga, as do carrasco Assis, o último bicampeonato) por qualquer dos troféus que eles possuem. Se os outros dizem, babando: “tenho tantas taças”, crispado de orgulho respondo, como no verso do hino “eu sou é tricolor”.
Parabéns Fluminense Football Club pelos seus 122 anos de história.
Eduardo Junqueira é escritor
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