Informação é inclusão
Neurodiversidade

Adoecimento Psíquico da família atípica

Na coluna Informação é Inclusão desta semana a convidada Dra Angélica Ávila Miranda fala sobre autismo e os desafios da família atípica

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16 de setembro de 2024
Adoecimento Psíquico da família atípica
A carga familiar e social no desenvolvimento das crianças pode ser menor com a intervenção precoce.

*Por Dra Angélica Ávila Miranda

“Doutora, eu caminhei pelos estágios do luto de maneira mais leve quando meu filho foi diagnosticado com leucemia há dois anos, em comparação com meu momento atual, com o diagnóstico de autismo. Meu sofrimento é maior, mais intenso e eu não vejo luz e esperança no TEA”, me relatou uma mãe de uma criança de seis anos de idade.

Essa fala impactante me fez refletir sobre a realidade do cuidado de uma criança autista, os malabarismos necessários para administrar a variabilidade de sinais, os desafios da vida social, adequação escolar, cuidados médicos, tratamento ideal versus tratamento possível e todas as outras incontáveis peças necessárias para montar o “quebra-cabeça da paz”.

Um dos grandes esforços em nosso meio científico é a informação para a identificação precoce de crianças de risco para o Transtorno do Espectro Autista (TEA), porque está claro que, quanto mais cedo se inicia uma intervenção adequada, maiores serão os ganhos no desenvolvimento dessa criança e menor será a carga familiar e social.

Mas, ainda que nas últimas décadas os estudos sobre autismo tenham recentemente ganhado reconhecimento significativo em todo o mundo, a experiência de fomentar uma criança diagnosticada é sub-representada e subexplorada e, apesar da importância teóricoprática do tema, pesquisas sobre estratégias de enfrentamento entre pais de crianças com TEA têm sido relativamente escassas, o que, invariavelmente, resulta em permanecer em um ciclo de embotamento social e afetivo em consequência também de preconceitos e julgamentos, tempo em que muitas pessoas ainda se posicionam negativamente quando o tema é o autocuidado.

Essa pressão cultural generalizada, fazendo inferências de que “não é importante”, “você tem que se esforçar”, levando à culpa de quem pratica o autocuidado e autoconhecimento tem severas repercussões, como o estresse crônico, ansiedade, Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) e depressão.

Particularmente, as mulheres, e sobretudo as mães, empenham-se em cuidar dos filhos, do cônjuge e esquecem-se de si mesmas ou, até mesmo as que lembram, se colocam em segundo plano, corroborando a procrastinação. Estudos evidenciam que ser pai e mãe de uma criança com TEA é uma experiência estressante e desafiadora, e apontam que os pais incessantemente apresentam ansiedade, depressão, TEPT, fadiga e alterações metabólicas, levando à pior qualidade de vida, de bem-estar e a níveis mais altos de estresse em comparação com cuidadores de crianças neurotípicas e crianças com outros diagnósticos como a trissomia do cromossomo 21, deficiência intelectual, TDAH, fibrose cística ou paralisia cerebral.

Em 2018, um estudo qualitativo no Egito com mães de crianças autistas evidenciou que o diagnóstico de autismo trouxe um efeito negativo à vida social e ao bem-estar mental das mães. Além disso, a pesquisa sugere que as preocupações financeiras, como a carga econômica e a necessidade de renda extra para cobrir o alto custo permanente para educação e tratamento singular relacionado ao diagnóstico, são fatores relevantes que contribuem para o aumento da fadiga dos pais, especificamente para famílias de baixa renda.

Constatação esta que, sem dúvida, pode se estender ao cenário brasileiro. A falta de apoio social tem um impacto negativo também na socialização familiar, fazendo com que os pais enfrentem maiores desafios que, em conjunto com as demandas específicas da criança, exacerbam o estresse e os sintomas depressivos. Neste sentido, fortalecer a rede de apoio formal e informal – como orientação profissional, frequência à igreja, grupo de amigos, vizinhos, membros da família extensa, grupo de pais que têm uma vivência semelhante e também comunidades on-line (as quais vem crescendo na última década) – ajuda os pais a lidarem com os comportamentos da sua criança e reduzir o estigma social enfrentado por ela.

Qualquer rede de apoio fortalecida colabora positivamente com a qualidade de vida dos pais, ajudando-os a manter o humor positivo, o pensamento organizado e o bem-estar físico e emocional. Em vista disso, os efeitos de se ter um filho com TEA nos pais e nas famílias são, como o próprio transtorno também é, multifacetados e generalizados. Atender às altas demandas de cuidados das crianças exige tempo, esforço, paciência e resiliência.

É desafiador devido à gravidade e cronicidade do transtorno, suas extensas comorbidades físicas e de desenvolvimento e as dificuldades dos serviços de saúde em disponibilizar amplamente as intervenções integradas e intensivas necessárias para o autista, além da luta pela garantia dos direitos. O maior reflexo positivo do autocuidado está no potencial de desenvolvi- mento da sua criança!

O autoconhecimento é uma forma de descobrir mais sobre a pessoa mais importante da sua vida: você. É um exercício de prestar mais atenção em você mesmo(a), refletir sobre seus traumas, seus medos, seus desejos e sobre tudo aquilo que o(a) faz feliz. Não é um processo fácil, mas os resultados serão duradouros e muito vantajosos para você. Objetiva ressignificar e relembrar quem você era antes do seu bem mais precioso nascer, a sua criança.

O autocuidado surge como uma vertente do autoconhecimento. Uma vez que você se conhece, sabe quem você é e o que você busca, deve aprender a cuidar do seu corpo e da sua mente, para garantir que os seus objetivos sejam alcançados com mais facilidade, de maneira mais leve. Esse processo não se resume a uma rotina de cuidados com a pele. Na verdade, é um esforço de realizar até as atividades que não são prazerosas, mas que são essenciais para o seu bem-estar – exemplificando de modo simples: realizar exames laboratoriais de rotina. Respondam-me: quem está em dia com sua rotina de exames preventivos anuais? De modo comum, prestamos mais atenção às pessoas que estão ao nosso redor ou a quem amamos profundamente.

Raramente, reservamos um tempo para olhar para quem somos, para pensar sobre nossos defeitos e sobre nossas qualidades. Com frequência, até nos esquecemos de cuidar do nosso corpo e da nossa mente e, para exercitar e alimentar o autocuidado, é necessário primeiramente ser honesto acerca dos seus próprios sentimentos. Portanto, em particular, vários pesquisadores afirmam (e estão corretos na afirmativa) que os pais de crianças com TEA necessitam de melhores opções de descanso e flexibilidade de seus empregadores e que os programas para ajudar o gerenciamento comportamental da criança têm grande potencial de colaborar para a melhora da qualidade de vida das famílias.

Por isso, afirmo convictamente que a chave de ouro para o início de qualquer planejamento de intervenção de uma criança diagnosticada com TEA é o autocuidado e o autoconhecimento, sendo o primeiro tópico a ser feito, explicado, orientado e estimulado quando se elabora o plano de intervenção individualizado da criança que está sob minha responsabilidade.

Outros tópicos são importantes e essenciais, como definição de terapias necessárias por prioridade, carga horária recomendada, avaliação, investigação e tratamento de comorbidades, avaliação de tratamento medicamentoso, avaliação e planejamento para adequações escolares, atividades extras, orientação acerca dos direitos previstos em lei e avaliação social, e devem ser seguidos como segundo tópico em diante. Diferentes estudos revelam que algumas áreas cerebrais se modificam quando o autocuidado é realizado.

Os pais, quando conseguem sair do estado de angústia e frustração, passam a se interessar mais pelo diagnóstico, buscam mais informação, esclarecem dúvidas com seu médico, lutam com mais energia para garantir os direitos da criança, melhorando significativamente a adesão ao tratamento com maior segurança.

É por isso que o sucesso na evolução de seu(sua) filho(a) com TEA será colossal quando você entender, compreender e aprender a intervir nos comportamentos da criança. O processo de luto ainda é um tabu, mas precisa ser elucidado, é um processo que se inicia a partir da perda de uma pessoa querida e que tem dinamismo semelhante quando se tem um diagnóstico (principalmente de condições crônicas), perda afetiva, saída do emprego ou outras mudanças. O primeiro estágio é a negação e isolamento, que tem como objetivo proteger a pessoa de uma verdade “inconveniente”, que pode arruiná-la psicologicamente.

A aceitação parcial é a fase logo após a negação, quando não se utiliza da negação por muito tempo. É um estado temporário, em que a pessoa vai gradativamente se acostumando com a realidade, até começar a reagir. No segundo estágio, tem-se como principal emoção a raiva. Surge quando não é mais possível negar o fato e há o sentimento de revolta e de ressentimento. É aquela fase em que você se pergunta: “Por que eu?”.

A raiva é expressa por emoções projetadas no ambiente externo e pelo sentimento de inconformismo. Para a família e os amigos, é uma fase difícil de se lidar, em razão de reações agressivas e condutas ríspidas quando alguém tenta trazer a pessoa para a realidade. Nessa fase, são comuns reações autodestrutivas como consumir bebida alcoólica de maneira exagerada e uso de drogas ilícitas, sem compreensão da gravidade de suas ações. No terceiro estágio, surge a barganha. A pessoa começa a ter esperança de uma cura em troca de méritos que acredita ter ou ações que promete empreender, com promessas de grande feito.

É um estágio perigoso, em que temos gente “vendendo” a cura milagrosa para várias doenças e condições, incluindo para o autismo, sem evidência científica de melhora e até com sérios riscos para a saúde física e mental por algumas recomendações. O quarto estágio é o mais intenso, podendo ser também o mais duradouro: a depressão. É o estágio de sentimentos de debilitação e tristeza, acompanhados de solidão. Apenas os que conseguem superar as angústias e as ansiedades são capazes de alcançar o próximo estágio, que é a aceitação.

A pessoa enlutada pode permanecer continuamente nesse estágio, desenvolvendo o transtorno de depressão profunda, com riscos de suicídio. É uma fase que requer muita atenção dos familiares e profissionais envolvidos, principalmente porque muitas pessoas se posicionam como se estivessem no quinto estágio, mas verdadeiramente ainda não estão. No quinto estágio, os sentimentos e angústias já foram externalizados, resultando em uma sensação de paz interior. Aceitar os fatos significa conviver pacificamente com a situação, e assim começa-se a ter condições reais de organizar o pensamento e fazer o que tem que ser feito.

A experiência do luto, embora dolorosa, é necessária para a pessoa retomar o contato com o mundo exterior – trabalho, vida social, relacionamento e projetos pessoais. Cada pessoa passa por essa trajetória de forma única, não sendo um caminho linear. Dependendo da sua personalidade, experiências de vida e capacidade de gerir emoções, a pessoa em luto pode se entregar aos sentimentos ruins no meio do caminho ou chegar ao estágio de aceitação com naturalidade.

O perfeito equilíbrio entre corpo e mente envolve muitos princípios. Na procura pela qualidade de vida, vale a pena se concentrar no autoconhecimento e explorar as mais diversas áreas da existência. Para alcançar o estado completo de plenitude, é ilusório achar que exista uma receita ou fórmula matemática, sendo essencial uma dose diária de autocuidado. Essa “palavra mágica”, que parece subjetiva e, muitas vezes, difícil de ser colocada em prática – acredite – não é um “bicho de sete cabeças”.

Mas você precisa começar! Sua criança é a sua missão de vida e, se a opinião dos outros é o que te move, essa opinião também é o que te para. Você não precisa da aprovação de ninguém para viver aquilo que você tem que viver. Organize o pensamento e faça o melhor dentro do seu contexto.


*Dra. Angélica Ávila Miranda é neuropediatra especialista em autismo.