Uma estátua de uma mulher descalça com um turbante segurando a cintura está instalada no Largo de São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde, na capital fluminense. O monumento é uma homenagem a talentosa bailarina Mercedes Baptista falecida em 2014, a primeira negra a ingressar no corpo de baile do Teatro Municipal em 1948. A artista rompeu o preconceito, criou uma companhia de dança, e introduziu os ritmos dos terreiros do candomblé na criação de um balé afro-brasileiro.
A escolha do local para acolher a escultura em bronze do artista Mário Pitanguy não foi aleatória. A zona portuária do Rio de Janeiro, que engloba os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, recebeu o nome de Pequena África pelo sambista e pintor Heitor dos Prazeres no início do século XX. A região constitui um espaço remanescente da comunidade afro-brasileira. Para lá, escravos libertos e oriundos de outros cantos, como a Bahia, se voltaram. Ao lado da oportunidade de trabalho e de moradias com preços acessíveis, a música e as danças eram constantes em espaços como as casas das tias baianas. Um ambiente marcado pelas rodas de samba, pelas casas de santo e pelos ranchos carnavalescos, um celeiro de gêneros musicais como maxixe, samba e choro.
Um animado ponto de encontro foi a casa da baiana Hilária Batista Almeida, conhecida como Tia Ciata, na rua Visconde de Itaúna, uma das figuras mais interessantes da cultura afro-brasileira. Artistas como Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres e João da Baiana, que se consagraram na cultura nacional, eram frequentadores assíduos.
“Vale a pena uma caminhada pela região que hoje integra o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, um lugar repleto de memórias e histórias do Rio de Janeiro”.
Luciene Carris, historiadora
Vale a pena uma caminhada pela região que hoje integra o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, um lugar repleto de memórias e histórias do Rio de Janeiro. Um deles é o Cais do Valongo que foi o maior porto receptor dos escravos do mundo.
Outros pontos interessantes para se visitar são o Jardim Suspenso do Valongo, o Morro da Conceição, a Praça dos Estivadores, a Pedra do Sal, o Centro Cultural José Bonifácio, o Cemitério dos Pretos Novos e a Praça da Harmonia, onde ocorreu a Revolta da Vacina em 1904. O passeio pode abrir caminhos para um olhar criterioso sobre o valioso patrimônio cultural encontrado. Além disso, instiga uma consciência histórica sobre essa relação entre o passado e o presente, bem como sobre o nosso papel como sujeitos da história e cidadãos.
O Largo de São Francisco da Prainha entrou para o roteiro internacional do prestigioso Time Out Londres como um dos espaços badalados para se conhecer no Rio de Janeiro. A revitalização parece constante com botecos e programas culturais. Uma das figuras notáveis é o empreendedor e produtor Raphael Vidal, responsável por mobilizar a região, atraindo para lá muitos artistas e músicos.
Botequins ao ar livre, como a Casa Porto e o Bafo da Prainha, ao lado do tradicional Angu do Gomes atraem um burburinho de gente dos mais variados lugares. Para além dos comes e bebes, é possível contemplar a arquitetura do casario antigo, um ambiente que transpira história e música. Aliás, a sede a céu aberto do bloco Escravos da Mauá, que percorre as ruas do bairro durante o carnaval, é ali. Quem sabe agora que encaminhamos para um controle efetivo da pandemia do coronavírus, possamos novamente vivenciar essa manifestação cultural tão intrínseca à história do Rio de Janeiro.
Luciene Carris é pesquisadora e historiadora formada pela UERJ. Autora do livro “Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca (1884-1962)”, publicado em 2021 pela editora Telha. Instagram: @lucienecarris
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