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Academia Brasileira de Letras do Cárcere

O advogado e jornalista Siro Darlan joga luz sobre algo que muita gente não conhece: a oportunidade de presos escreverem suas experiências.

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09 de abril de 2024
Academia Brasileira de Letras do Cárcere
Muitos dos presos ficam restritos às leituras religiosas.

*Por Siro Darlan

A Academia Brasileira de Letras do Cárcere foi criada com o intuito de enaltecer as obras de escritores e escritoras que contribuem para nossa literatura mesmo estando presos, e tem como principal objetivo mostrar ainda mais versões e pontos de vista por trás da vida de importantes pessoas que merecem ser lembradas por ter resistido aos sofrimentos do isolamento social e produzido suas obras em condições adversas como forma de buscar através do conhecimento a libertação da vida do crime e ter seus livros lidos e apreciados por quem gosta de literatura.

A ABLC tem por finalidade estimular a escrita e leitura de livros escritos por encarcerados e egressos, visando sua reinserção social e a valorização do ser humano em cumprimento de penas privativas de liberdade.

A Regra 64 de Mandela – Regras Mínima das Nações Unidas para Tratamento dos presos –  determina que: “Toda unidade prisional deve ter uma biblioteca para uso de todas as categorias de presos, adequadamente provida de livros de lazer e de instrução, e os presos devem ser incentivados a fazer uso dela”. Do mesmo modo o artigo 21 da Lei de Execução Penal nº 7210/84 também prescreve que: “Em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos”.

No entanto, muitas unidades prisionais não possuem bibliotecas, e, entre a Polícia Penal, prevalece a ideia de que apenas livros religiosos podem ser aceitos. Consequentemente, os detidos são privados do acesso a uma verdadeira literatura capaz de promover o conhecimento e a libertação intelectual. Em muitos estados da Federação não há bibliotecas nos presídios e no Brasil, segundo informa o Ministério da Justiça, das 1458 unidades prisionais. 615 não contam com bibliotecas (42%).

A Academia Brasileira de Letras do Cárcere e a ANACRIM – Associação Nacional da Advocacia Criminal pretendem estimular a leitura entre os presos firmando convênios com o sistema penitenciário para a promoção de instalações de bibliotecas em todas as unidades, buscando parcerias com as livrarias, os sebos, as bibliotecas públicas e todos que desejarem contribuir para a ressocialização dos presos através da leitura. Aqueles que desejarem participar dessa cruzada, podem entrar em contato com a redação da Tribuna de Imprensa Livre( (21) 98846-5176); ou  ANACRIM (+55 21 972333199) e doar seus livros para a formação das bibliotecas prisionais.

Mesmo com as barreiras impostas por uma parcela dos agentes penitenciários, há presos e presas que conseguem acesso à literatura, o que os ajuda não só a passar o tempo e a abater parte de suas penas por meio de programas de remição por leitura; em alguns casos, os livros alteram radicalmente suas perspectivas de vida.

Foi o que aconteceu a Samuel Lourenço Filho, 37 anos, condenado por homicídio no Rio de Janeiro em 2007. Antes da prisão, Samuel não era um leitor contumaz; foi no cárcere que, para fugir do ócio, passou a ler diariamente. Como tantos presos, começou pela Bíblia, convertendo-se ao protestantismo. Poderia ter ficado nisso, mas, em 2008, Samuel trabalhou como bibliotecário da prisão – ele não tinha acesso à sala dos livros, mas era o responsável por passar a lista das obras entre os presos, que escolhiam seus títulos preferidos. O sucesso de público, lembra o ex-bibliotecário, era o autor de autoajuda Augusto Cury.

Um dia, um dos títulos chamou sua atenção: Crime e castigo, de Dostoiévski. Iniciou a leitura para não parar mais. “O que me impressionou foi o retrato da miséria humana. Tudo é muito verdadeiro, e ler me ajudou a pensar o meu contexto pobre e hostil na prisão. Eu sentia o frio siberiano, o abafamento dos locais superlotados, a escuridão, o gosto das sopas aguadas? Era tudo como no cárcere. Ele não traz um tom de esperança, mas fala da capacidade de suportar tudo aquilo. Eu me enxergava ali”, diz.

A abertura oficial da Academia está marcada para o dia 18 de abril de 2024, às 17h, na Avenida Rio Branco n⁰ 277 (4⁰ andar), próximo ao Metrô Cinelândia, no Centro. Durante o evento, haverá a nomeação da mesa diretora e a divulgação dos ocupantes de 20 cadeiras, que serão ocupadas simbolicamente em homenagem a autores que contribuíram significativamente para nossa literatura, tanto falecidos, como Graciliano Ramos, Nelson Mandela, Martin Luther King, Esperança Garcia, Lélia Gonzales quanto vivos e continuam contribuindo para nossa sociedade, como José Pepe Mujica, Ângela Davis, entre outros.

A premissa inicial da Academia é ser uma entidade de caráter cultural e literário, com ênfase em despertar o interesse na apreciação de obras feitas por presos, que muitas vezes são esquecidas ou têm menor repercussão.

Além disso, parte dessa premissa é dar posse a novos escritores que estão no cárcere ou recém-saíram da prisão, trazendo o conhecimento deles como uma forma de ressocialização e levando para o leitor uma experiência da qual, na maioria das vezes, nunca viveram. Isso elevará o compromisso de apoiar e promover a diversidade e inclusão na literatura com os meios democráticos e de teor civilizatório, levando em conta que todos devem ter seus pontos de vista ouvidos e apreciados.

Recorde-se que segundo as Regras Mínimas das Nações Unidas que instituíram as Regras de Mandela, você cidadão também é um fiscal do fiel cumprimento da pena aplicada, pois segundo a Regra 83.

1. Deve haver um sistema duplo de inspeções regulares nas unidades prisionais e nos serviços penais: (a) Inspeções internas ou administrativas conduzidas pela administração prisional central; (b) Inspeções externas conduzidas por órgão independente da administração prisional, que pode incluir órgãos internacionais ou regionais competentes.

2. Em ambos os casos, o objetivo das inspeções deve ser o de assegurar que as unidades prisionais sejam gerenciadas de acordo com as leis, regulamentos, políticas e procedimentos existentes, a fim de alcançar os objetivos dos serviços penais e prisionais, e a proteção dos direitos dos presos.


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Siro Darlan é jurista, advogado, professor e jornalista. Ex-juiz da Vara de Infância e Juventude