*Por Siro Darlan
O Brasil precisa mudar. E a mudança começa necessariamente com um modelo de sociedade que respeita os direitos de crianças e adolescentes. Em 1990 poderíamos ter dado uma guinada importante em nossos costumes ao implantar os direitos das crianças e adolescentes.
O modelo antigo não prestigiava a valorização das crianças, mas apenas oferecia uma proteção a alguns segmentos de menores. Vigia o então chamado Direito dos Menores com regras excludentes e seletivas que aprisionava crianças pobres por serem pobres e incomodarem com sua presença denunciadora nas ruas e logradouros o sofrimento e o preconceito.
Com a mudança de paradigma, era a hora de iniciar o resgate da cidadania dos mais vulneráveis, as crianças. A história dessas crianças do Brasil começa com sua exploração como grumetes nos navios portugueses que aportaram em nossas terras habitadas pelos povos originários. A vergonha inicial dos colonizadores e a hipocrisia de uma moralidade canhestra criou a Roda dos Expostos para esconder a vergonha de gerar seres humanos indesejados.
A Santa Casa de Misericórdia e outras instituições afins viraram depósito de pequenos corpos indesejáveis. A legislação logo regulamentou essa rejeição, dando um ar de legalidade ao sofrimento dos infantes. Crianças, que são energias e vida viraram problema social e como consequência sua exclusão social foi o “remédio” adotado pelos legisladores e juristas.
Lembro que um dia encontrei uma menina de 6 anos na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, que ao ser apresentada a mim, redarguiu assustada: “Juizado de Menores, o que prende e estupra criancinhas?” Fiquei corado de vergonha porque essa era a imagem que as crianças tinham de seus “protetores”. Estava cobertas de razão. Crianças não podiam entrar na sede do Juizado da Infância e da Juventude na Praça Onze, se não estivessem vestidas, não entravam de chinelo, não entravam sem camisa. Era a Casa de Justiça das Crianças que a elas não fazia justiça.
A criação de um ônibus acolhedor que as levava até o Juizado para serem documentadas, encaminhadas as escolas, lavadas e vestidas, localizadas suas famílias mudou a relação das crianças antes enjeitadas com o poder público. Pais antes encaminhados as delegacias de polícia passaram a ser encaminhados para a Escola de Pais.
A Justiça da Infância e da Juventude, muito antes da Justiça Itinerante ia para as comunidades reconhecer direitos e promover regularização de guarda, tutela, adoção e documentação. As crianças “desaparecidas” eram localizadas e devolvidas ás suas famílias. A imagem e seus corpos, ante violado pelos meios de comunicação passaram a ser protegidos e isso gerou a ira de algumas empresas midiáticas poderosas que explorava o trabalho de crianças e adolescentes impunemente.
Mas havia uma resistência, que só agora, 33 anos depois da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente foi enfrentado e legislado. A Lei 14.692, de 3 de outubro de 2023, finalmente permite ao doador de recursos aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente a indicação da destinação desses recursos.
Essa luta das organizações sociais sempre tiveram uma renhida oposição do Ministério Público que entendia que por ser doação com carimbo de tributo, não podia o doador indicar seu destino. Essa resistência impediu durante 33 anos que recursos fossem alocados em políticas públicas que teriam salvado a vida e o futuro de milhares de crianças no Brasil.
O Fundo da Criança e do Adolescente é fomentado pelas multas aplicadas pelas Varas da Infância e da Juventude e por doações com abatimento no imposto de renda. Todos os projetos sociais em benefício das crianças e adolescentes aprovados previamente pelos Conselhos de Direito podem se beneficiar desses recursos para realizar políticas públicas que beneficiem crianças e adolescentes.
Ocorre que a maioria dos doadores gostariam de aplicar em projetos que pudessem acompanhar e que lhe trouxesse contrapartida. Por exemplo uma empresa de material esportivo gostaria de investir em projetos esportivos; uma editora de livros teria preferência pelos programas educativos. Antes da lei e em razão da interpretação do Ministério Público isso era impossível.
Felizmente o legislador brasileiro resolveu dar às crianças brasileiras um presente que em muito beneficiará projetos vitoriosos e sérios como o Uerê da Favela da Maré, da socióloga Yvonne Bezerra de Mello, como a Mangueira do Amanhã, como as Escolas de Samba Mirim, dentre outros.
Quem sabe começamos agora a resgatar a dignidade das crianças e adolescentes do Brasil. A partir da vigência do § 2º-A da Lei 14.692/23, O contribuinte poderá indicar o projeto que receberá a destinação de recursos, entre os projetos aprovados por conselho dos direitos da criança e do adolescente.
Siro Darlan, advogado e jornalista
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