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Opinião

Gasômetro, da quase tragédia ao sonho rubro-negro

O terreno do Gasômetro, possível local do estádio do Flamengo, é tema da Coluna Conexão Histórica, escrita pela historiadora Luciene Carris.

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26 de junho de 2024
Gasômetro, da quase tragédia ao sonho rubro-negro
O terreno do gasômetro irá a leilão e o Flamengo deve comprar para construir seu estádio

Por Luciene Carris

Recentemente, a Prefeitura do Rio de Janeiro desapropriou uma área do antigo gasômetro para a construção do novo estádio de futebol do Flamengo. O projeto se insere nos objetivos do atual projeto de revitalização do antigo Centro, que busca recuperar cultural, social e economicamente a região do Centro da cidade.

A área escolhida para o novo estádio está localizada em uma avenida movimentada e repleta de histórias: A Avenida Francisco Bicalho. O logradouro é um importante corredor de tráfego que liga a Ponte Rio-Niterói, a Avenida Brasil, o Túnel Rebouças e a Linha Vermelha; além de abrigar a Rodoviária Novo Rio, o Terminal Intermodal Gentileza, as instalações do antigo gasômetro, o prédio da Estação Leopoldina e a quadra da Escola de Samba Unidos da Tijuca.

Vale ainda recordar que antes da existência da Avenida, havia uma praia no local conhecida como Praia Formosa, também chamada de Enseada de São Cristóvão ou Saco de São Diogo. Antigamente, essa praia era um local de acesso a água potável para as embarcações. Outra curiosidade é que durante a invasão francesa no Rio de Janeiro, em 1711, o corsário René Duguay-Trouin criou uma bateria de artilharia com intuito de se defender dos colonos portugueses. Em um passeio na região localizamos a Ponte dos Marinheiros, que passou por sucessivas transformações ao longo dos séculos, e ainda resiste, atualmente, como uma pequena ponte interligando a Avenida Francisco Bicalho e a Avenida Presidente Vargas.

A praia foi, pouco a pouco, sendo aterrada, utilizando, inclusive, as terras do desmonte do Morro do Senado, que se localizava na área que compreende a atual Praça da Cruz Vermelha. O fato é que a região do Canal do Mangue era considerada foco de proliferação de muitas doenças como a febre amarela e a varíola. Assim, o governo Rodrigues Alves, entre 1902 e 1906, definiu um novo projeto urbanístico de remodelação urbana e saneamento com a intenção de melhorar a imagem do Rio de Janeiro, então capital da República, vulgarmente apelidada de “túmulo de estrangeiros”.

E, assim, coube ao engenheiro Francisco Bicalho a coordenação da reforma da região portuária há cerca de cento e vinte anos, que, depois de remodelada, passou a atrair diversas indústrias, como uma nova fábrica de gás, localizada ao lado do Canal do Mangue, que ficou conhecida como Gasômetro de São Cristóvão, inaugurada em 1911 pela empresa belga Société Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro (SAG). Originalmente, possuía uma capacidade inicial de 90 mil metros cúbicos, utilizando carvão como matéria-prima, e chegou a ser considerada uma das maiores no mundo.

Diga-se de passagem, que até meados do século XIX, a iluminação pública no Rio de Janeiro era um problema para a segurança pública. Até então, a matéria-prima utilizada nos lampadários era o óleo de baleia, um mamífero que era largamente pescado na Baía de Guanabara.

Após algumas tentativas, o empresário brasileiro Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, obteve a concessão para criar a Companhia de Iluminação a Gás e a Fábrica de Gás do Aterrado do Rio de Janeiro, em 1854, que foi posteriormente vendida para a empresa inglesa Rio de Janeiro Gas Company Limited.

Esta, por sua vez, foi transferida para a belga Société Anonyme du Gaz do Rio de Janeiro (SAG), cujo controle acionário pertencia à empresa canadense Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited (Light). Vale acrescentar que a empresa, sob o nome de Companhia Estadual da Guanabara (CEG) foi estatizada em 1969, depois renomeada, em 1974, Companhia Estadual de Gás, e, décadas depois, em 1997, foi privatizada.

De fato, a ampliação do consumo de gás na cidade alterou significativamente a vida doméstica no século XX, especialmente o ambiente da cozinha, substituindo os tradicionais fogões movidos a lenha e carvão, que espalhavam fuligem e sujeira pela casa. A SAG utilizou a publicidade como estratégia para popularizar os benefícios dos equipamentos movidos a gás, como o novo modelo de fogão, que era vendido pela concessionária.

Já na década de 1930, a empresa promoveu cursos de culinária voltados para o público feminino, ensinando noções de manejo dos equipamentos, preparo de receitas no forno e fogão, além de abordar aspectos de limpeza e organização dessa nova cozinha moderna.

Plano terrorista no gasômetro

Mas a história do gasômetro é envolta em controvérsias e polêmicas, além do medo de possíveis explosões. Em 1968, o brigadeiro João Paulo Burnier arquitetou um plano terrorista com o intuito de culpar os movimentos de esquerda. A intenção era provocar uma tragédia com milhares de mortes no local do Gasômetro da Avenida Francisco Bicalho. O Atentado ao Gasômetro ou Caso Para-Sar foi frustrado quando o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido como “Sérgio Macaco”, se recusou a seguir as ordens do brigadeiro. O episódio foi negado por Burnier, o oficial foi alvo de retaliação, o que levou a sua prisão e, posteriormente, ao seu afastamento da Aeronáutica.

Quem sabe, a instalação do novo estádio do Flamengo no antigo local do gasômetro trará novas histórias, transformando o espaço marcado pelo passado industrial e pela polêmica durante o regime militar em uma arena de celebração esportiva e de desenvolvimento socioeconômico para o Rio de Janeiro.


Luciene Carris é pesquisadora e historiadora formada pela UERJ. Autora do livro “Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca (1884-1962)” (Telha, 2021), entre outros. Instagram: @lucienecarris